Ao que nos referimos exatamente quando dizemos “livro”? Por que apontamos aquele objeto cheio de páginas por essa palavra? O que diz “livro”?
Esquecemos inadvertidamente essa aproximação que "livro" guarda com o verbo "livrar". O verbo nos diz: "tornar livre de". Seria então possível aludir ao livro enquanto "o lugar onde algo está tornado livre"? Para entendermos essa aproximação precisamos incluir em nossa reflexão a palavra "liberdade".
Etimologicamente, livro em latim é liber, libris, significando o que está a salvo, preservado. Já liberdade tem sua origem em libertas. Contudo, mais originariamente, no grego encontramos biblos para referir livro, significando entrecasca (o interior dos papiros). Para liberdade o grego diz eleuthéria, significando dever chegar, o que está a salvo, aquilo que está preservado em sua integridade. Essa análise etimológica permite-nos referir o livro como aquilo que está na entrecasca, que está a salvo em sua integridade.
Ao pensarmos o livro digital a partir dessa análise inicial, não encontramos dificuldade em considerá-lo apenas mais um invólucro, uma roupagem, uma outra entrecasca. O e-book – essa mídia microprocessada na forma de um tablóide – é apenas uma nova capa para o mesmo conteúdo. Contudo, um livro digital pretende ir além. Ele almeja entregar ali, naquele gadget, a possibilidade de acessos remotos através da internet, permitindo a leitura dos emails, a postagem dos twitters, a atualização do blog, o acesso ao último vídeo disponível, ouvir a música da hora e tantas outras “funções”. O livro digital já embarca assim a possibilidade da digressão. Essa mídia tem vocação para nos distrair, inclusive da leitura do texto.
Mas é preciso entender as pretensões da indústria do e-book. Sob o ponto de vista do mercado editorial, o e-book pretende atrair o público não-leitor, tornando-os leitores. O público que não lê é aquele que não encontra interesse no texto. O não-leitor, em geral, é aquele que mais rapidamente se adequa ao mundo multimídia. A lógica da indústria é simples: se pudermos propor um artefato que permita uma experiência multimídia associada ao texto de um livro tradicional, possivelmente teremos acesso a uma fatia totalmente nova de consumidores, gente que se terá interesse em um novo tipo de experiência de leitura. O livro digital inaugura um outro mercado e, com isso, outro tipo de demanda por conteúdo. Agora, não se trata apenas de um texto escrito, produzido por um autor entretido com as possibilidades da palavra. Agora, a experiência sensível deve ser multimídia e, assim, o próprio autor passa ser uma espécie de mídia-artista.
A indústria do livro digital não visa bibliófilos. Ela visa tecnófilos. Essa é a grande diferença entre os dois públicos. O e-book pretende produzir dinheiro transformando os i-letrados em e-letrados.
É preciso, entretanto, estar atento às implicações desse movimento. Muitos falam que o e-book decretará o fim do livro, mas talvez isso seja um grande equívoco. O que está em jogo aqui não é o fim do livro e, sim, o fim da literatura tal qual a conhecemos hoje. Quais as conseqüências disso? Que impacto pode causar a supressão gradual da palavra em favor das expressões multimídias?
Essa questão é bastante complicada. Não pretendo respondê-la aqui. Por ora devemos apenas pensar a razão pela qual a raça humana desenvolveu toda a sofisticação da linguagem. O sentido sempre foi cerceado pela palavra escrita. Quais as implicações de substituirmos a escrita pela linguagem multimídia? Que mudanças no pensamento isso poderá provocar? Como lidaremos com as profundas questões humanas?
Não posso deixar de assumir que isso me amedronta. A possibilidade de que não tenhamos mais o instrumento para as mais profundas reflexões é algo assustador. No entanto, para alguém que se apega ao hábito questionador da filosofia, obrigo-me a perguntar: será que no futuro teremos necessidade de profundas reflexões? Será que não atingiremos o ápice de uma civilização tomada pela distração efêmera, uma geração de relações superficiais com o pensamento?

Gostaria muito de ter estado presente.
ResponderExcluirTambém queria ter participado, mas como não foi possível, deixo aqui minhas impressões, com base no post.
ResponderExcluirAchei bárbara a introdução relativa às diferentes origens da palavra livro (um dia ainda farei incursões na filologia, ou algo assim!), percebo uma confusão entre o conteúdo e a ferramenta (ebook x e-reader), e atrevo-me a discordar sobre o público abrangido. Certamente o mercado quer abarcar iletrados, mas há apaixonados pela leitura em si e mesmo bibliófilos que poderão adeqrir a essa nova "roupagem" do livro. Incluo-me aí. E conheço muita gente que torcia o nariz até ter em mãos um e-reader onde consegue armazenar muitos dos seus textos preferidos. Assusto-me também, entretanto, com a banalização ou superficialização que as novas mídias propiciam, mas não penso no ebook como causa e talvez nem mesmo como um meio propagador. Mas deixo essas percepções para discussão. Abraço!
Mauren e Leo,
ResponderExcluirAgradeço os comentários e a manifestação do querer estar presente no evento.
Espero que novas oportunidades possibilitem um encontro.
Abraços.
Cássio Pantaleoni