“Escritor”, sublinhou. Eu fiz que sim. Dois tantos de conversa e já se descobre a laia. Interessei-me fingidamente pela pinturela abstrata agarrada à parede que nos encarava. Para ignorar. “Prosa, sabe?”, fez questão. Na espera, a sala falsificava a proximidade. Ainda ali todo pelo exame, hora marcada, fosse gastrite ou algo menos. Que era tipo conversador, das simpatias, dos mais assuntos e nobres interesses. Não creio aborrecimento, estivesse em biblioteca, sarau, conferência, evento de elevados temas, concertos, recreios filosóficos ou até mesmo em folga. Mas, no consultório, enfadormente, não se espera tal e qual. No conseguinte, teimei de desafiar o presunçoso moço: “Estilo?”
Entendeu menos, o escritor. Desconfiasse de si. De minha parte, pensei no derradeiro. Na hora foi o que me coube. Saber dizer-se prosador exige referir o estilo. É meio o cúmulo, transbordamento, alma de quem apõe-se em texto. Pensei tão assim enquanto adolescia. Quando quis escrever; pudesse ampliar, dizer diferente. E a gente vê o best seller, não entende, parece rasa distração. “Então?” Mal antes pude ver a frustração daquele “conversador de consultórios”. Quem mais assim pela a clareira das ideias? Porque é difícil, porque leva tempo, porque exige. E os escrevinhadores de hoje estão mais ali para o simples dizer, arrematando pela palavra usual, justificados pelo menor esforço.
“Não tenho um estilo definido. Não gosto de rótulos. Meu trabalho é uma desconstrução”.
Preferir a lucidez é sobrar solitário no durante, no vigor do pensamento. Uma feita, escrevi: “O que não sei fazer, não faço; desfaço, pois esse é o fazer de quem não sabe como fazer”. Por isso, falam em desconstrução, esses aí. Em tanto, a menina pousada na recepção se interessou. Nem sei bem se foi pelo meu silêncio enrabichado no discurso do rapazote. “Joyce?”, referiu ela.
Desperdicei outro pensamento, porquanto a ouvi no assim da conversa, afagando pelo critério o autor de Ulysses. Taciturno, revi o interlocutor fazer sua digressão: “Tudo direto, simples, do jeito que se fala”. Lembrei de mim pelo avesso, esquecido das possibilidades. Lá, na espera, locutante, o rapaz dizia o mesmo, com distância segura, deslembrando Joyce e a atendente. São próprias, essas desérticas personagens. Até listou as páginas virtuais onde vazavam a público os seus manuscritos. Direta e simplesmente, que se poderia supor extensão de seu traço. A menina desfigurou o diálogo: “Talvez Guimarães Rosa?”
A pequenez do resguardo que aludia ao médico na outra sala não a merecia. Houvesse tal saleta no texto de um contista! Absurda e surda é a ficção, que mesmo ainda ganha nossa complacência. Na vida, contudo; no real, assusta. E menos do escritor: “Tem que falar do atual, passado é para museu”. Categoricamente, queria destituir-me da conversa. Que pensava? Que dizia? Que almejava? Nos sidos, um pretensioso, um diletante, um oportunista.
“Tu achas que o Guimarães fala do passado? Os textos dele são atualíssimos!”
Entendo a força dos superlativos para os jovens. A profundidade da ênfase. Nem enfático, nem profundo, calou-se o homem.
Em casa, entre remédios e prescrições, a azia que me subia, por mim: “Literatura é texto cuidado”. Tomei uns ímpetos de ligar para o consultório; queria ouvi-la um tanto mais. E no sobressalto: “Sim, eu era aquele na poltrona do meio, quando apontaste um par de escritores”. Não houve surpresa. Rebateu que tinha esquecido Proust, Machado, Flaubert, e até outros. “E o que os torna rememoráveis para você?” Perdeu as reticências: “A evidência de que não conseguimos fazer igual?” Desliguei. E revisei pela enésima volta a frase que culminava em meu texto.
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