domingo, 5 de dezembro de 2010

Um conto de verão

Contou nos dedos o número de vezes que visitara o litoral. Onze. Orgulhava-se de ter nascido com um dedo a mais. Mão esquerda, dois mindinhos. Sorriu, enquanto admirava o dom contrastado contra o pára-brisas.

Percorria já mais de 3 quilômetros. Agora falta pouco, pensou. Exigia tudo de um carro. Aquela DKV era capaz de singrar pelas freeways, mesmo nos tráficos mais intensos, com a agilidade de um coelho. Apenas mais duas horas e estaria admirando aquele mar imenso: a brisa acariciando seu rosto, o aroma salitrado, a areia fina e um desfile de bumbuns variados.

Foi lá pelo quilômetro cinco que o primeiro bocejo enamorou-se da monotonia. Os olhos boiaram entre as pálpebras, acompanhando o ruído intermitente do velho motor. O calor emprestava preguiça ao corpo e mesmo o pagode saltitante que vazava do rádio parecia ronronar em coro com o vento quente que zunia nas janelas laterais.

A primeira curva foi desafio pequeno, pois o braço direito já pesava de tal modo que, mesmo com a folga no volante, alinhou surpreendentemente o carro com a curvatura da estrada. Mesmo assim assustou-se quando um Audi A4 buzinou freneticamente, falando pelo motorista o que não podia ser ouvido.

Mastigou uns restos de pastelina que já há uns três dias decoravam o banco do carona. A única coisa crocante que pode sentir entre os dentes foi uma velha obturação que escolhera a viagem para se fazer lembrada. Cuspiu tudo e bebeu da água que já quase fervia no painel frontal. Lá se iam mais três quilômetros. Estava quase chegando.

Foi na altura do quilômetro dez que o pé direito adormeceu. O formigamento gostoso foi subindo pela perna até alcançar a coxa. A cabeça pendia para o lado esquerdo, cristalizando um sorriso torto onde a saliva ameaçava escorrer. Um olho meio aberto o outro meio fechado e aquele zumbido gostoso que dizia: “olha a curva, olha a curva da morena na avenida... que coisa linda, que coisa linda”!

Mas antes da morena, a estrada insinuou sua forma mais angulosa, empurrando a DKV para a virgindade do mato marginal. Acordou no hospital, com doze pontos na cabeça, onze ossos quebrados e um mindinho amputado. O médico explicou: não fosse o caminhão capotar por sobre a DKV e não teria sofrido qualquer arranhão.

Levou três anos para comprar outro carro, quatro para juntar dinheiro para voltar ao litoral e oito anos para livrar-se de uma micose de areia, mas bastaram apenas dois dias para descobrir que um dedinho perdido é coisa que jamais se supera.

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