Como ensinava Tomás de Aquino, um pequeno erro no início pode conduzir para um grande equívoco ao final.
Pois, recentemente, um periódico paulista publicou uma reportagem sobre o comportamento dos jovens com relação ao hábito da leitura, intitulada “Jovens trocam livros por 'leitura digital'”. A referida reportagem embarcava uma constatação forte: os jovens de gerações anteriores apenas liam (o negrito é meu!) as obras cobradas pela escola, e que, agora, a prática é diferente: são sites, redes sociais, SMS e e-mails.
Evidentemente, algumas constatações são produzidas a partir do olhar desviado da medusa, pois, do contrário, as intenções originais correriam o risco de petrificar. O que merece alguma reflexão aqui é esse “apenas” negritado no parágrafo anterior. O que pretende insinuar? Acaso as obras da escola não constituem um conjunto de leituras significativas? Acaso ler apenas esse contingente de livros é pouco para as mentes ávidas por outras leituras? Em que medida essas leituras acessórias de sites, redes sociais, SMS’s e emails se consituem em leitura complementar necessária e significativa? Não compreendo esse “apenas”. Ou talvez eu o compreenda de tal modo que a indignação me priva de expressar o que penso acerca dessa reportagem. Contudo, a cólera dos deuses não vinga de perguntas tão preliminares. Há mais na reportagem.
Fazendo alusão ao apelo da conectivadade proporcionada pela internet, a colunista indaga: “Como deixar de lado todas as infinitas possibilidades que o mundo digital oferece e se dedicar à leitura de um livro, com suas centenas de páginas, cheias de palavras e letras inertes, exigindo concentração para serem decifradas?”. Pergunta que poderia ser traduzida da seguinte forma: “Por que deveríamos deixar de nos divertir?”.
Ora, a reportagem avalia os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) divulgados nessa semana. Segundo essa pesquisa, a leitura não está entre as prioridades dos jovens de 15 anos. Em países como o nosso, 46% dos estudantes afirmam que leem apenas para obter as informações que precisam; 41% só leem se forem obrigados (!); e 24% acham que ler é um desperdício de tempo. E para por uma pá de cal sobre o assunto, apenas um terço disse que a leitura é um dos seus hobbies favoritos. Veja que insumo valioso temos aqui. Um repórter hábil e um grupo de especialistas podem transformar esse insumo em produtos acabados revestidos de uma legitimidade incontestável. Será?
Conforme a reportagem, os “especialistas” em educação (?!) e tecnologia preferem confrontar os dados da PISA, argumentando que, na verdade, o jovem de hoje lê muito mais. Eles ponderam que os adolescentes nunca leram tanto – não são só livros que são lidos, mas vídeos, sites, sms, e-mails e outra “gama imensa de informações”. Será que esses especialistas ainda acreditam que Ícaro irá alcançar o sol antes que suas asas derretam? Que importa a quantidade de leitura de tais “informações”? Aquilo que transita em sites, sms, emails etc possui alguma relevância outra que não a simples conversa de nossos avós? Bem, talvez seja isso: agora nós lemos e escrevemos as conversas que antes eram travadas na sala de jantar, nas esquinas, nos pontos de encontro. Sendo assim, o jovem “lê” mais! - Nonsense!
Na referida reportagem ainda é possível encontrar outra pérola. Segundo a coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia da Informática (!) da PUC-SP "O adolescente lê e escreve muito, comunica-se muito mais por escrito. As gerações anteriores liam só os livros da escola. Os jovens de hoje não: estão sempre se informando dentro dessa vida social digitalizada”. É preciso perguntar a Doutora: que tipo de informação da vida social digitalizada é essa? Que patrimônio para o conhecimento essa informação oferece? Acaso a Doutora esquece que os livros da escola cumprem uma função propedêutica, enquanto a “vida social digitalizada” cumpre a função de divertimento? Será essa geração capaz de refletir criticamente sobre a realidade?
A reportagem oferece outras pérolas. Um tal pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária opina que “A leitura digital é mais lúdica e interessante porque não é linear e permite uma liberdade multimidiática". Leitura digital? Ora, Senhor Claudemir Viana, não existe no ser humano algo como “leitura digital”. O ser humano lê como sempre leu. Leitura digital é leitura executada por software. Ainda não conheci um ser humano que efetue leitura digital. E o que dizer dessa tal “liberdade multimidiática”? Desde quando fomos privados dessa liberdade em outros tempos que não a era digital? Acaso o teatro, o cinema, o livro, a pintura, a fotografia já não existiam antes como múltiplas mídias? Claro que o acesso agora é convergente no ambiente digital, mas daí a dizer que não havia liberdade é uma falácia de grande magnitude. E o pesquisador vai além. Segundo Viana, trocar SMS com os amigos, postar no Twitter e ver recados no Facebook são atividades mais prazerosas que ler um clássico literário porque dão mais autonomia. Meu caro Viana, responda-me: autonomia ou menos trabalho? Ele mesmo tenta responder, dizendo: "Se cansar do site em que está navegando, é só abrir um outro link. Não precisa mais ler página por página, na ordem. Por isso, o que o jovem está perdendo é a paciência, não a concentração”. Não estaria o jovem perdendo as duas coisas? Não estaria o jovem deixando de se concentrar no conhecimento, porque não encontra mais paciência para apreender conhecimento? O jovem de hoje está, sim, submetido à distração contínua, Viana.
Contudo, há na reportagem participações lúcidas. Alguns especialistas alertam: “Ler apenas o essencial e aquilo que interessa pode levar à perda da aptidão para analisar situações com mais profundidade”. A psicóloga Dora Sampaio Góes, do de Dependência da Internet do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (Amiti), da USP , por exemplo, avisa: "O jovem sabe de tudo o que acontece, mas não aprofunda o conhecimento dos fatos. A dúvida é: até que ponto essa abordagem generalista é benéfica?". Ponto para a USP e sua psicóloga esclarecida!
Essa discussão de ler mais ou ler menos é desnecessária e equivocada. A questão deve estar articulada desde a perspectiva qualitativa. Devemos avaliar a qualidade da leitura. Ler livros clássicos de literatura colabora para a formação de referências histórico-culturais e, portanto, permite aprofundar o conhecimento sobre o mundo e desenvolver a reflexão crítica. As novas tecnologias permitem uma comunicação mais ampla, entre pessoas que não convivem fisicamente próximas, mas a comunicação não ultrapassa os modelos tradicionais. Fala-se, como sempre se falou (ou para quem preferir - fala-se através da escrita), daquilo que está à disposição do alcance. Nesse sentido, o alcance está ampliado. E isso é bom. Contudo, o conhecimento não necessariamente está sendo ampliado.
Quando os jovens são submetidos às leituras da escola – ou apenas às leituras da escola – eles estão sendo submetidos ao conteúdo legítimo e inviolável da cultura, conteúdo livre das interpretações equivocadas que transitam no meio digital. Antes tínhamos o estudo; agora temos as opiniões.
O que me recompõe em todo esse debate é a compreensão de que aquele jovem inteligente, cedo ou tarde, descobre que a exacerbação comunicacional proporcionada pelas vias digitais não é suficiente para uma clara compreensão do seu papel de ser-no-mundo. Todo o jovem tem a sua frente uma escolha: quantidade ou qualidade. E se Maslow cunhou corretamente a sua teoria, o topo da pirâmide motivacional, mais cedo ou mais tarde, transforma-se em urgência existencial.
E para provar que acredito nisso, recomendo: feche o meu blog e vá ler “A sociedade da Mente", de Marvin Minsky. Talvez lá você encontre a lucidez que falta a alguns especialistas.
Hipertexto, multimídia, hiperlink... São apenas denominações novas para o que já acontecia muito antes do surgimento do 'livro digital' e da Internet. Mas antes o 'hiperlink' vinha da curiosidade, da sede do saber que fazia o leitor correr atrás das referências às quais os livros lhe remetiam; hoje, as referências estão a um click, mas não há o interesse de se aprofundar. é tão fácil acessar qualquer conteúdo que ninguém se importa mais: "um dia, se precisar, vou no Google" substitui aos poucos a importância do saber digerido e retrabalhado pela razão e pelo estudo.
ResponderExcluirOs jovens não leem mais - eles usam mais a palavra escrita para comunicar-se. Mas isso não significa, nem de perto, que eles crescem com a leitura.
Parabéns pelo texto lúcido e esclarecedor.