quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Jovens Leitores?

Como ensinava Tomás de Aquino, um pequeno erro no início pode conduzir para um grande equívoco ao final.

Pois, recentemente, um periódico paulista publicou uma reportagem sobre o comportamento dos jovens com relação ao hábito da leitura, intitulada “Jovens trocam livros por 'leitura digital'”. A referida reportagem embarcava uma constatação forte: os jovens de gerações anteriores apenas liam (o negrito é meu!) as obras cobradas pela escola, e que, agora, a prática é diferente: são sites, redes sociais, SMS e e-mails.

Evidentemente, algumas constatações são produzidas a partir do olhar desviado da medusa, pois, do contrário, as intenções originais correriam o risco de petrificar. O que merece alguma reflexão aqui é esse “apenas” negritado no parágrafo anterior. O que pretende insinuar? Acaso as obras da escola não constituem um conjunto de leituras significativas? Acaso ler apenas esse contingente de livros é pouco para as mentes ávidas por outras leituras? Em que medida essas leituras acessórias de sites, redes sociais, SMS’s e emails se consituem em leitura complementar necessária e significativa? Não compreendo esse “apenas”. Ou talvez eu o compreenda de tal modo que a indignação me priva de expressar o que penso acerca dessa reportagem. Contudo, a cólera dos deuses não vinga de perguntas tão preliminares. Há mais na reportagem.

Fazendo alusão ao apelo da conectivadade proporcionada pela internet, a colunista indaga: “Como deixar de lado todas as infinitas possibilidades que o mundo digital oferece e se dedicar à leitura de um livro, com suas centenas de páginas, cheias de palavras e letras inertes, exigindo concentração para serem decifradas?”. Pergunta que poderia ser traduzida da seguinte forma: “Por que deveríamos deixar de nos divertir?”.

Ora, a reportagem avalia os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) divulgados nessa semana. Segundo essa pesquisa, a leitura não está entre as prioridades dos jovens de 15 anos. Em países como o nosso, 46% dos estudantes afirmam que leem apenas para obter as informações que precisam; 41% só leem se forem obrigados (!); e 24% acham que ler é um desperdício de tempo. E para por uma pá de cal sobre o assunto, apenas um terço disse que a leitura é um dos seus hobbies favoritos. Veja que insumo valioso temos aqui. Um repórter hábil e um grupo de especialistas podem transformar esse insumo em produtos acabados revestidos de uma legitimidade incontestável. Será?

Conforme a reportagem, os “especialistas” em educação (?!) e tecnologia preferem confrontar os dados da PISA, argumentando que, na verdade, o jovem de hoje lê muito mais. Eles ponderam que os adolescentes nunca leram tanto – não são só livros que são lidos, mas vídeos, sites, sms, e-mails e outra “gama imensa de informações”. Será que esses especialistas ainda acreditam que Ícaro irá alcançar o sol antes que suas asas derretam? Que importa a quantidade de leitura de tais “informações”? Aquilo que transita em sites, sms, emails etc possui alguma relevância outra que não a simples conversa de nossos avós? Bem, talvez seja isso: agora nós lemos e escrevemos as conversas que antes eram travadas na sala de jantar, nas esquinas, nos pontos de encontro. Sendo assim, o jovem “” mais! - Nonsense!

Na referida reportagem ainda é possível encontrar outra pérola. Segundo a coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia da Informática (!) da PUC-SP "O adolescente lê e escreve muito, comunica-se muito mais por escrito. As gerações anteriores liam só os livros da escola. Os jovens de hoje não: estão sempre se informando dentro dessa vida social digitalizada”. É preciso perguntar a Doutora: que tipo de informação da vida social digitalizada é essa? Que patrimônio para o conhecimento essa informação oferece? Acaso a Doutora esquece que os livros da escola cumprem uma função propedêutica, enquanto a “vida social digitalizada” cumpre a função de divertimento? Será essa geração capaz de refletir criticamente sobre a realidade?

A reportagem oferece outras pérolas. Um tal pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária opina que “A leitura digital é mais lúdica e interessante porque não é linear e permite uma liberdade multimidiática". Leitura digital? Ora, Senhor Claudemir Viana, não existe no ser humano algo como “leitura digital”. O ser humano lê como sempre leu. Leitura digital é leitura executada por software. Ainda não conheci um ser humano que efetue leitura digital. E o que dizer dessa tal “liberdade multimidiática”? Desde quando fomos privados dessa liberdade em outros tempos que não a era digital? Acaso o teatro, o cinema, o livro, a pintura, a fotografia já não existiam antes como múltiplas mídias? Claro que o acesso agora é convergente no ambiente digital, mas daí a dizer que não havia liberdade é uma falácia de grande magnitude. E o pesquisador vai além. Segundo Viana, trocar SMS com os amigos, postar no Twitter e ver recados no Facebook são atividades mais prazerosas que ler um clássico literário porque dão mais autonomia. Meu caro Viana, responda-me: autonomia ou menos trabalho? Ele mesmo tenta responder, dizendo: "Se cansar do site em que está navegando, é só abrir um outro link. Não precisa mais ler página por página, na ordem. Por isso, o que o jovem está perdendo é a paciência, não a concentração”. Não estaria o jovem perdendo as duas coisas? Não estaria o jovem deixando de se concentrar no conhecimento, porque não encontra mais paciência para apreender conhecimento? O jovem de hoje está, sim, submetido à distração contínua, Viana.

Contudo, há na reportagem participações lúcidas. Alguns especialistas alertam: “Ler apenas o essencial e aquilo que interessa pode levar à perda da aptidão para analisar situações com mais profundidade”. A psicóloga Dora Sampaio Góes, do de Dependência da Internet do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (Amiti), da USP , por exemplo, avisa: "O jovem sabe de tudo o que acontece, mas não aprofunda o conhecimento dos fatos. A dúvida é: até que ponto essa abordagem generalista é benéfica?". Ponto para a USP e sua psicóloga esclarecida!

Essa discussão de ler mais ou ler menos é desnecessária e equivocada. A questão deve estar articulada desde a perspectiva qualitativa. Devemos avaliar a qualidade da leitura. Ler livros clássicos de literatura colabora para a formação de referências histórico-culturais e, portanto, permite aprofundar o conhecimento sobre o mundo e desenvolver a reflexão crítica. As novas tecnologias permitem uma comunicação mais ampla, entre pessoas que não convivem fisicamente próximas, mas a comunicação não ultrapassa os modelos tradicionais. Fala-se, como sempre se falou (ou para quem preferir - fala-se através da escrita), daquilo que está à disposição do alcance. Nesse sentido, o alcance está ampliado. E isso é bom. Contudo, o conhecimento não necessariamente está sendo ampliado.

Quando os jovens são submetidos às leituras da escola – ou apenas às leituras da escola – eles estão sendo submetidos ao conteúdo legítimo e inviolável da cultura, conteúdo livre das interpretações equivocadas que transitam no meio digital. Antes tínhamos o estudo; agora temos as opiniões.

O que me recompõe em todo esse debate é a compreensão de que aquele jovem inteligente, cedo ou tarde, descobre que a exacerbação comunicacional proporcionada pelas vias digitais não é suficiente para uma clara compreensão do seu papel de ser-no-mundo. Todo o jovem tem a sua frente uma escolha: quantidade ou qualidade. E se Maslow cunhou corretamente a sua teoria, o topo da pirâmide motivacional, mais cedo ou mais tarde, transforma-se em urgência existencial.

E para provar que acredito nisso, recomendo: feche o meu blog e vá ler “A sociedade da Mente", de Marvin Minsky. Talvez lá você encontre a lucidez que falta a alguns especialistas.

Um comentário:

  1. Hipertexto, multimídia, hiperlink... São apenas denominações novas para o que já acontecia muito antes do surgimento do 'livro digital' e da Internet. Mas antes o 'hiperlink' vinha da curiosidade, da sede do saber que fazia o leitor correr atrás das referências às quais os livros lhe remetiam; hoje, as referências estão a um click, mas não há o interesse de se aprofundar. é tão fácil acessar qualquer conteúdo que ninguém se importa mais: "um dia, se precisar, vou no Google" substitui aos poucos a importância do saber digerido e retrabalhado pela razão e pelo estudo.

    Os jovens não leem mais - eles usam mais a palavra escrita para comunicar-se. Mas isso não significa, nem de perto, que eles crescem com a leitura.

    Parabéns pelo texto lúcido e esclarecedor.

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