domingo, 23 de janeiro de 2011

Os Despertos - Fragemento 1

NOTA DO AUTOR: Entre 1995 e 1999, escrevi uma pequena novela, publicada em 2000, intitulada "Os despertos". Foi uma experiência importante, pois forneceu-me os insumos para o aprimoramento da minha escrita desde então. Dez anos depois, reavaliando o texto, descobri muitos problemas. Fiquei tentado a efetuar algumas mudanças radicais. No entanto, quando assim tentei, descobri que a intenção original do texto seria perdida. Nas próximas semanas, publicarei aqui no blog, em pequenos fragmentos, essa novela, com pequenas alterações que julguei adequadas e que não corrompam as intenções dramáticas originais do texto. Espero que apreciem.


OS DESPERTOS


Cássio Pantaleoni

Copyright © Cássio Pantaleoni, 2000

“Agora entendo o que se procurava acima de tudo em nossos dias, quando se procuravam mestres da virtude. O que se tentava achar era um bom sono, e para tanto as virtudes coroadas de dormideiras” – Nietzsche



Parte I – Primeiro fragmento

Há almas que se arrastam por passagens estreitas, entre os muros do passado. Mesmo ali, à luz cambaleante, descobre do que são feitas. Enquanto tudo já anuncia outro fim.

***

Foi num sábado. Nem sei porque gastei tanto tempo na casa de meus pais, pois só havia restos de outros brilhos – tempos em que os mexericos da cidade nem nos alcançava. Mas isso foi antes dela partir. Seria mais um dia de cultivar as aflições, não fosse aquele encontro. É preciso dizer: eu cambaleava os trinta anos, no curso da aflição que só nos dispõe ao desalento, e mesmo que ainda houvesse energia para os ideais que se semeia na juventude, eu escolhi o conformismo contemplativo. A morte da minha irmã, Isabela, acinzentou as nossas vidas. Se éramos família simples, sem grandes posses, tudo o que se amava era o outro. E recordações poderiam bastar? Não às pessoas humildes. Gente desprovida vive de esperança, mesmo que o inexpressivo gastar do tempo esvazie o pouco da alma. Ora, o pai, a mãe? O que poderiam? Um trago ou mais, o trejeito de quem não se conforma. Eu? Deixei de ler, abandonei a universidade, afastei os amigos. Sequer queria conversar; por que, então ficar perto de quem quer que seja? Confesso: são muitas conversas sem sal. O silêncio anestesia.

Ela era contagiante. Meu pai, sem lastro, costumava dizer que a família era o berço da lucidez – esse era o pensamento que nos regia. Nós três costumávamos conversar muito. Bem verdade que não éramos família de doutores, filósofos ou professores, contudo, havia essa disposição para os pontos de vistas incomuns, discussões que invadiam as madrugadas. Até a mãe, atenta aos discursos inflamados, de sorriso discreto e olhar cheio de orgulho, espiando por cima daqueles óculos de armação dourada, a agulha picando o bordado, avisar o tarde das horas. Isabela tinha o prumo, conciliadora que era, para achar qual argumento que lhe moldava o discurso à multidão invisível; difícil não prestar atenção. Como não admirá-la?

Eu desbotei no dia em que a terra a escondeu. Há personagens que só existem pela mão do principal protagonista. Meus pais queriam outro enredo, mas não consigo ficar sob as luzes muito tempo. Sempre fui sombra. Sempre fui rascunho.Pois talvez, em tanto, o que viria em seguida, foi além das minhas possibilidades.

Havia aquele bar. Na esquina da Vasco. Era um abrigo, um esconderijo onde eu podia medir o tamanho da minha insignificância. Sim, é verdade. Cada um de nós carrega alguma cicatriz, marcas de vaidade ou mesquinharia, pouco sei. Mas a cerveja – um gole justifica, conclui; a gente encontra algum pensamento que nos conforta, que inflama a alma. Sem uso, afinal. Cada um daquele bar procurava o mesmo: o entusiasmo perdido, a oração certa, o discurso hipnótico que conquiste a atenção de tantos ouvintes, que possa nos fazer autores de ideias revolucionárias ou contadores de historias maravilhosas. Ninguém realmente estava ali para escutar, pois as historias, nesses lugares, sempre são as mesmas. Nada de novo. Nem no bar, nem em parte alguma.

Lá encontrei Thales pela primeira vez. Por três vezes, ele interferiu no passo do destino; mas, curiosamente, reafirmou muito daquilo em que sempre acreditei: é preciso estar desperto para perceber o mundo como ele realmente é. Seria errado supor que minha compreensão dessa sonolência à qual estamos submetidos teve influência dele. Na verdade, apenas foi mais um protagonista. Rara felicidade, profunda dor ou o que quer que seja. Entendi com ele que, se jogamos tudo para o alto, em busca dessa felicidade reclamada, o fardo será maior. Essa é a causa da inquietude que constantemente nos aflige. Entretanto, há nisso algum segredo, um capaz até de nos enternecer. É sobre isso que quero escrever: de como se impõe a beleza singela em meio ao lixo podre e fétido das almas humanas, de como o cenário falso, frágil e previsível desfavorece a atuação daqueles que crêem no bem.


(Fim do fragmento 1)

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