terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Os Despertos - Fragmento 2

(Parte I – Segundo fragmento)

Qualquer bar sempre esconde tipos. Mal sei se temos escolha quando alguém interage, interrompendo o pensamento, se acontecesse de anunciar-se em frase de efeito. Pode-se ignorar. Mas então nem mais estamos assim tão alheios. Perturba a atenção. Lagos calmos não são imunes às pedras. O silêncio quebrado é fértil para a curiosidade, toma de súbito a nossa consciência, para instaurar essa irreprimível e invejosa vontade de julgar os outros – se nos julgássemos sem covardia?

Na noite em que nasceu tal história, igual ou tanto aconteceu, embora o diálogo estabelecido fosse de outra voz. Inverno e chuva, ainda na casa de meus pais, indo a passos largos atracar no velho bar da Vasco. O velho sobretudo de lã, encharcado, esquecia de aquecer-me, lembrando-me que até a primavera ainda seriam tempos de frio úmido. Acho que o relógio já começava a madrugada quando cheguei ao Kalith. Costume do dono, talvez, ou oportunismo comercial, cobrar taxa extra depois de certo horário, coisa que vinha na conta junto com o seu descaso. Imaginei estar vazio o lugar, dado a chuva. Procurei qualquer coisa ao entrar, por despistar. Alguns que ali já cansavam viraram para a porta, no ver de quem vem. De mim, nenhum rosto familiar. Muitos fumavam, no conversar miúdo, bêbados solitários diante de copos engasgados pela sobra não consumida – viam algo que só eles podiam ver? No canto, um homem corpulento, nem barbeado, cansava sobre a mesa, boca entreaberta, deformado pelo seu próprio peso. Preferi o balcão. Pedi cerveja.

Ciro, proprietário, atendente, conhecia os meus hábitos. Raramente puxava conversa, no mais apenas a saudação rotineira. Ele me entregou a cerveja no feitio de um descaso, o prato de amendoim para provocar a sede. Bebi um gole.

Do que valia ali? Ora, a figura comum que encontramos em bares é a do bêbado. Adorno necessário, que dá credibilidade ao cenário. Ele representa o fracassado confesso, isento de culpa, vítima das vicissitudes da vida. Por mais que já os tenhamos observado antes, sempre atrai essa espécie de olhar desabonador que tanto emprestamos ao julgar os outros, longe que estamos de representar o mesmo papel. Aquele gordo ali, por exemplo. Na parte mais escura do ambiente, a cara mergulhada no vinho derramado, a respiração implorada, a língua à mostra, os músculos da face em contração involuntária. Um fedor podre de indolência na atmosfera viciada do bar.A gente conhece o tipo. Seria a infelicidade retratada na existência residual de alguém que tombara pelo sono estéril e impotente? Os anseios, as lutas: que personagens encenam?

Enquanto a chuva chiava no paralelepípedo, distraído pela embriaguez daquele homem gordo, dei-me a qualquer recordação – a adolescente inquieta e sorridente fugia do menino choroso, assustava-o com histórias de fantasmas que devoravam crianças: “Vamos, Ivan! Vamos! Se você não correr bem depressa, ele te pega e te leva para o fundo do rio!”. O garoto olhava para trás, esperando despistar algo que nem via, mas ameaçava: “Espera eu! Espera eu, mana!”. A súplica o engasgava, chorada, sem crer que ela não parasse para ajudá-lo. A imaginação faz eclipse na nossa realidade. Eu acreditava menos no que via do que naquilo que sentia. A lágrima suicida na borda dos meus olhos fez um fio de saudade. Pudesse abraçar aquele menino, acalmá-lo, dizer-lhe que não temesse as fantasias que os outros inventam. Muito jovem para compreender. Somos sempre jovens para compreender qualquer coisa além de nossas convicções. Enchi a boca para um grande gole e brindei, em pensamento, ao bêbado adormecido.

Quando Thales sentou-se ao meu lado ele ainda era um completo estranho. E foi assim durante algum tempo. O que aconteceu depois disso, embora inusitado, foi de certo modo muito mais vivo do que eu poderia imaginar. Ele pediu vinho. Ergueu a taça no trejeito de uma solenidade, com a voz grave e resoluta, perturbando a monotonia daquele lugar.

― Que às almas vazias seja ofertado o vinho!

Das caricaturas, a pior delas é a insinuação profética. O estado enfermo do lugar não acomoda frases soltas sem incitar a curiosidade. O rapaz, jovem e alto, de longos cabelos claros, insurgente, sorria precipitadamente, como quem se arrepende por se deixar notar. O rosto era fino, uma incomum alvura, olhos amendoados; uns vinte e cinco anos, talvez. Figura curioso, devo dizer. Usava roupas escuras, para completar um jeito intelectual. Afastei o copo vazio. Ele desculpou-se:

― Perdoe-me, não quero incomodar. Falei alto por descuido. Acho que já bebi além da conta – mirou o fundo do copo e sorveu o que restava num rápido movimento. Achei que ia pedir mais bebida, porém preferiu um sorriso desdenhoso para desenhar no ar com as mãos um grande círcul

― Se você me permite... Desculpe-me, mas... esse lugar, essas conversas sussurradas, os rostos escondidos na penumbra... Não são a evidência do vazio de nossas almas?

Confesso que nem entendi. Pensei em deixá-lo. Ele continuou:

― O copo é uma prótese, quero dizer.... beber para preencher o vazio?

Sei pouco sobre o que senti naquele momento. Náusea? A situação era inconveniente. Havia uma incompatibilidade naquele diálogo. Não foi o que ele disse, mas o modo como disse. Percebi certa mágoa. Claro que aquilo não podia ser gratuito. Ninguém, em seu mais justo juízo, se anuncia para um desconhecido sem esperar alguma reação. Ele tentava socializar. Por que? Continuei mudo por mais alguns segundos.

― Incomodo? – os olhos arregalaram.

― Não.

― Não vê como os limiares nos são despercebidos? Enquanto bebemos, sentimos esse preenchimento que parece até definitivo. A mente esvazia, as preocupações se aquietam; tudo o que pensamos e sentimos fica anestesiado. Depois, há o sono. E, com ele, os sonhos... Sabe o que acho? É algo circular: o sonho nos leva a beber, mas a bebida nos devolve ao sonho...

“Devaneios de um sábado a noite”, já julgava tudo despropositado. Não tinha interesse por aquela conversa, mas como não consigo ser grosseiro, deixei a coisa seguir. Afinal, não deveria ir muito longe.

― Ivan – estendi-lhe a mão.

― Thales. Espero não estar incomodando.

Dei de ombros e descobri que o meu copo estava vazio.

(Fim do fragmento 2)

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