terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Os Despertos - Fragmento 6

De ocasião, viver é complicado. Desaprendi o simples viver, desses sem intenções maiores, que se deixa acontecer. Tomado por pensamentos, reflexões e interpretações esqueci a vida em si. Tornei impossível agir sem ensaiar primeiro. A menininha correu em direção à mãe, atropelando o sorriso com as palavras rápidas. Não entendi o que dizia, mas, pelo sorriso devolvido, vi que ela encontrava graça em mim. A mulher, leve aceno, agradeceu com o olhar a paciência. Cordialmente, sorri também, pensando em arriscar a conversa. Porém, tudo me parecia inútil. Ignorei as fantasias que já me tomavam e lembrei, nos delicados movimentos da menina, de Isabela.

A angústia me alcançou outra vez. Aquela menina era um cristal bruto, com inimagináveis possibilidades de lapidação; bastaria um descuido para o cristal partir ou lascar, diminuindo assim suas possibilidades originais. A mulher fechou o livro, ofereceu sua mão à menina, e escolheu a trilha do parque para um passeio. Percebi o último olhar. Nem sei porque, mas enquanto as duas iam pelo caminho de terra úmida, senti que eu não merecia mais.

Pois diga-se: assim é a vida – começa com aquele oceano sem limites; nadamos incansavelmente em direção ao horizonte e, com sorte, encontramos algum rio. O rio é a suposta escolha, embora tenha sido descoberto apenas porque não nadamos na direção oposta. A vontade de permanecer em seu curso se mantém pelas lembranças daquela imensidão assustadora do oceano que ficou para trás; afinal, agora é possível ver a margem. Seguimos o rio, pois ele é a melhor possibilidade de encontra a nascente, aquilo que explica o oceano. Mas, à medida que subimos o rio, a correnteza torna-se mais forte, e cada passo exige maior esforço. Alguns escolhem ficar naquela posição, onde a capacidade de aguentar a força da correnteza é mantida às custas de pouco esforço. Outros teimam em crer que a nascente pode estar logo ali e arriscam-se a perder o equilíbrio, deixando-se levar pela correnteza apenas porque forçaram o avanço. E, ao final, irremediavelmente, morre-se muito perto da nascente, onde a queda d’água assustadora esconde o pequeno filete de água que brota da pedra em algum lugar não muito distante. Embora não se tenham notícias de que a nascente alguma vez tenha sido alcançada, todos acreditam que está lá, entre os verdes tapetes de musgos.

Enquanto as duas desapareciam entre as árvores, pensei na nascente que nunca alcançaria. Lá estava eu, desperto mas desamparado, resistindo à correnteza do rio. Era um lugar confortável, não exigia paixão, não gerava expectativas. Um lugar apropriado. A paixão anestesiada. Não há lugar para paixão na vida de um homem solitário. Levantei-me e voltei para casa.

(Fim do Fragmento 6 e Fim da Parte 2)


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