segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Os Despertos - Fragmento 7

Parte III



Sem que eu notasse, a noite se acomodou ao pé da minha cama. Na penumbra do quarto eu brincava com as sombras das mãos na parede, projetadas pela luz amarelada do poste em frente à janela. Ora eram caricaturas delicadas de uma borboleta, ora monstruosas formas – assim como a vida: pensamos ser a luz, mas somos apenas o indício de sua existência; somos a sombra, que em sua aparição disforme e imprevisível, denuncia que há luz em algum lugar. E, como sombras, ora nos anunciamos promissores e sensíveis, imagem do belo e do conhecido, ora monstruosos e decadentes, imagem delirada de nossos medos mais profundos.

Os velhos sonhos não concretizados, os absurdos dessa existência, isso me incomodava: frustração improdutiva. De outra sorte, escondido entre os escombros, algo agora espreitava. Vez que outra, ao mexer os dedos, a sombra arriscava algo familiar. Na cama, por assistir aquele balé na parede, impacientei. Espiei o céu, escuro, sem estrelas. Aborrecido, pus-me a procurar papel e caneta. Uns riscos sem sentido, o desenho disforme: não sabia o que fazer. Gastava o tempo. Até que os rabiscos cederam lugar às palavras, aos nomes de pessoas. Freneticamente eu escrevia. Quanto mais escrevia, mais sem sentido tudo se tornava. Um nome me alcançou: olhei para a folha manchada de rabiscos e, no centro, destacava – ISABELA. Contemplei. E lembrei-me da mulher na praça.

A lembrança era despropositada. Mas a sensação? Desejo, paixão, curiosidade? Não. Tudo menos paixão. Nunca me apaixonei. Desejo talvez. Não paixão. Antes eu costumava observar alguns casais no parque, em suas carícias pedintes, apenas o ritual para alcançar algo mais profundo. Paixão é apenas uma fantasia que disfarça o instinto sexual. Talvez as mulheres! Essas, sim, fantasiam. É conveniente viver a fantasia. O real é apenas referencial. A mulher nunca ama o real; ama o imaginário daquilo que poderia ser feito do real, porém, totalmente inalcançável. O homem? O ritual necessário, o fazer parecer, em prol do caminho mais fácil. No fundo, ele reafirma o imaginário da mulher! Paixão é medo! Medo de perder o que se conquista. Toda essa afirmação do sentimento é a mascara do desejo. Ali, agora, eu lidava com aquela coisa imprevista: a imagem delicada da mulher na praça.

Pra me livrar, saí apressado. Desci as alamedas sombrias com o passo largo. Isabela e eu, quando crianças, havíamos percorrido quase todos os becos e ruas da cidade, mas agora tudo era diferente. A cidade que antes parecia ter um brilho próprio, agora era pálida. O velho bar da Rua XV. Não que lá eu me sentisse melhor. Ver outros abandonos me confortava. Era o meu inferno moderado, onde a condenação era olhar-se no espelho sem perceber a passagem do tempo.

Na porta, parei. As mãos no bolso, o olhar perdido.

— O velho impasse: ir ou não ir em frente?

A frase interrompeu meus pensamentos. A voz, familiar, o rosto, escondido atrás dos cabelos, dissimulava o sorriso jocoso e o olhar ostensivo: o homem da noite anterior. Ele continuou.

— Não entrar é viver o eterno martírio de não ter aproveitado algo; entrar é arriscar-se a descobrir que não havia nada que valesse a pena. Por certo, você não suportará esse paradoxo por muito tempo, meu amigo — uma mão no meu ombro para estender a outra:

— Lembra-se de mim? Ontem? Aqui mesmo?

— Lembro sim... — declarei, fingindo a simpatia. — Você é o “filósofo” perdido na madrugada anterior, certo? – arrisquei em tom zombeteiro.

— Filósofo? Bondade sua. Não estava perdido. Entrei ontem pela primeira e última vez, espero, por curiosidade. Não combina muito comigo.

— Não sei se combina comigo também... – desdenhei.

— Você parece aborrecido... Mas um homem pode se iludir por muito tempo.

— Você mora aqui perto? – disfarcei.

— Cheguei na cidade há pouco tempo. Nos mudamos para cá na semana passada. Transferência, sabe como é. Os empregos de hoje em dia...

— Entendo. Deve ser desagradável ser forçado a mudar para um lugar estranho.

— Não é comum aceitarmos as mudanças tranquilamente, não é verdade? Sempre há um tempo de instabilidade emocional, coisa que chateia, mas já me acostumei .

Novamente, ele, com toda a sua eloqüência, um tanto fora de moda. Por um lado era interessante, por outro, causava uma sensação incômoda – como se eu estivesse sendo diminuído. Em geral, eu até reconhecia um certo complexo de inferioridade. Mas depois de tudo que eu havia vivido... Thales trazia consigo aquele ar de intelectual, não de modo pomposo. A sutileza me irritava. Quando estamos à frente de alguém inteligente, longe das personagens carnavalescas dos livros de histórias ou romances de ficção, sentimo-nos ameaçados; é como ser obrigado a se reconhecer um inseto. Ele era do tipo de pessoa que, enquanto você tenta dizer uma mentira, é capaz de convencê-lo que acredita que você diz a verdade, mas ao final faz com que a gente se sinta um verdadeiro mentiroso. Sua segurança era inconveniente. Para mim, pessoas que possuem muito autoconfiança não percebem as pequenas ameaças que o cercam. Eu,por exemplo, era a ameaça daquele momento: sentia inveja, ou raiva, disfarçado por um sorriso amarelo e pelo esfregar das mãos. Olhei bem nos seus olhos e ataquei:

— Não me leve a mal, mas acho despropositada essa nossa súbita aproximação.

Encarou-me surpreso. Continuei:

— Não quero parecer rude, mas por que você puxou conversa comigo ontem? Não é muito comum ser abordado com questões profundas num antro de gente decadente.

— Você me surpreende realmente! O que você fazia ali, afinal? Vai a público para não falar com ninguém? Ora, era apenas uma conversa!

Corei intensamente. Senti-me idiota. Por que era tão rude com ele?

— Desculpe-me. Quando o medo nos ronda...

Ficou em silêncio por alguns instantes. Eu queria ficar só.

— Sei o que você sente – interpelou.

— O que?

— Não creio que valha discutir isso agora.

—Me desculpa, tá? Não estou numa boa fase.

— Como é seu nome mesmo?

— Ivan.

— Ah, sim... Pois bem, meu amigo Ivan, creio que essa conversa é apenas um subterfúgio. A sutileza de todo esse ensaio, toda essa ansiedade que aparece, oculta atrás das palavras, deve ser pensada. Se por acaso começamos uma conversa e, mesmo que ela nos pareça fora de propósito, é porque há um vestígio de simpatia. Isso demonstra que ainda nos resta alguma capacidade social. E você deve saber que, mesmo que residual e pouco autêntica, é funcional... Funciona,entende? É assim que se tornam possíveis os diálogos.

— Sei. E onde você pretende chegar? – interrompi.

— O que quero dizer é que, apesar de todos o nosso pouco entusiasmo, as pessoas podem nos surpreender – esboçou um sorriso ridículo. — Se me permite, você é do tipo que foge do que quer buscar.

Corri os olhos pelo meio-fio e cutuquei com a ponta do sapato o lixo encalhado na sarjeta, empurrando-o para dentro.

(Fim do fragmento 7)

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