Ele continuou.
― Sei que parece filosofia, mas, na verdade, só existe filosofia quando há carência. Estivéssemos repletos de um sentimento confortante, estaríamos tão apaixonadamente entregues a ele que não haveria tempo para a filosofia.
Observá-lo em sua excentricidade, lembrou-me as conversas com Isabela. Figura inesperada, cutucava a curiosidade.
― Devo supor, então, que suas palavras também tem origem nessa mesma carência? – voltei-me para o balcão para disfarçar o sarcasmo.
― O que pode trazer alguém para um lugar destes? Numa noite de sábado? Falta de companhia? Família distante? Curiosidade? Seja o que for, é sempre carência. Mas qual o verdadeiro sentimento capaz de motivar uma pessoa a isolar-se em um lugar como este? Por que em geral estamos fugindo? Você não acha estranho?
Eis a circunstância. Há, nesses casos, duas opções: deixar tudo na superfície, ou arriscar um mergulho. Seja! Certas verdades são encontradas assim. Um mar, observado da terra, sugere imponência, com aquela superfície tranquila, nem parece nos ameaçar; imagem forte, fácil esquecer daquilo que esta sob a superfície das águas. Se mergulhamos com coragem nessas profundidades, esquecendo da majestade das ondas, afinal descobrimos um mistério, que, de certa forma, justifica a superfície.
Ao meu lado, um homem na superfície, avisando o mais-além, com tal discurso. O que escondia? O mergulho impulsivo poderia desvendar o mistério, se disposto o risco. Não no meu caso. Eu não costumo mergulhar; sou um observador de superfície. Ainda que algo se contorcesse sorrateiramente por aquelas águas.
― Talvez essa preocupação, comum em nossos dias – insistiu –, a falta de uma intimidade verdadeira...isso nos trava, nos diminui a vida. Não queria dizer que não há mais amizade entre as pessoas, amizade real. A gente finge. É mais fácil parecer do que ser. Isso é a raiz da carência. Somos carentes de ser...
Ele, sério e convicto. Conclusivo sim. Eu? Confuso mesmo. Tentava entender, ao mais. O dialogo acalmou e preferi refletir um tanto. A admiração de um truque de mágica nao seria maior. Algo de raro e precioso naquela circunstância. Ele, de sorriso leve, adivinhava o meu pensamento. Em outro canto do bar a janela espelhava a luz que escapava da rua. A chuva desistia, suficiente para empurrar um que outro para fora do bar, abotoando capas e casacões ate a altura do pescoço. Fechei os olhos por um instante, tentando a mente vazia. Quase adormeci - na verdade, creio ter cochilado ligeiramente. Quando abri os olhos, ele já havia deixado o bar. Talvez eu o tivesse ofendido, pois não avisou. O relógio marcava duas horas da manha. Paguei o que devia e caminhei ate a saída, antes procurei no ambiente qualquer coisa. Reparei mais uma vez no bêbado gordo sobre a mesa, no seu papel irrelevante. Ciro espiava por detrás do balcão, enquanto testava a resistência de uma rolha de um vinho sem nome. Acenei levemente com a cabeça e decidi voltar para casa.
Enquanto caminhava, tentei recapitular aquela conversa. Repassei da cena o que me lembrava. Seria alucinação? As vezes, quando tenho certos pesadelos e acordo sobressaltado, quero alcançar alguns detalhes - alguns se perdem para sempre; outros São como um filme: pode-se vê-los infinitas vezes. Passasse de um sonho, afinal, eu cochilei junto ao balcão. Mas o que significava? Vezes há em que sonhamos absurdos, porém, em geral, são mosaicos ou imagens caleidoscópicas de experiências vivenciadas: basta agitar um pouco e encontramos algum sentido. Decerto aquilo não era assim tão difuso, mas pouco recordo de outro caso em que alguém iniciou alguma conversa tão incomum. Evento singular, necessariamente um delírio?
Ao chegar ao meu apartamento, abri a porta com cuidado. Os vizinhos se perturbavam facilmente. A nora do velho soldado que me alugara o apartamento sempre encontrava uma reclamação. Fechei a porta e atirei as chaves sobre uma grande almofada ao lado da entrada. Sem outra mobília, exceto o colchão onde dormia. Atirei-me sobre os lençóis desarrumados, juntamente com os resíduos de minhas preocupações. Sentia-me diferente. Na verdade, sempre me achei diferente. E dai? É comum a gente se julgar diferente. Quem não pensa assim? A gente sempre inventa algo que nos difere, e temos toda a motivação para exibir-nos desse modo, como um raro adorno. Usamos isso para justificar o nosso comportamento, para termos desculpas para os nossos insucessos, para as nossas contradições. É incrível como inventamos versões diferentes de nos mesmos, apenas para garantir alguma atenção. Todavia, ser admirado é tão raro quanto admirar. E admiração só acontece quando nos interessa fazer disso um traço da nossa "diferença". Havia sim uma mudança, menos importante. Um dissabor, se o mundo desbotasse, tal tédio, tal impaciência. Tudo era previsível, explicação. Via pouco por surpreender no ser humano. Entretanto, o encontro com Thales trazia o inusitado, forma em meio às manchas. Desconhecia o poder daquele evento. Algo estava por acontecer. Talvez me propiciasse o meu lento retorno a superfície.
(Fim do fragmento 3 e fim da Parte 1)
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