terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Os Despertos - Fragmento 4

(Parte 2 – Primeiro Fragmento)


― Sara! Para de pular nas poças d’água! Você tá encharcando os teus sapatos!

A voz estridente reverberou pelo edifício até a porta do meu apartamento, um eco distante. Acordei. Cedo para quem arriscara as horas na noite anterior. A janela surpreendia o cipreste que envelhecia contra o céu acinzentado, anunciava a umidade e a tristeza daquele domingo. Incolor, o dia me devolvia para a sonolência, entre nada, eu dormitava.

― Sai daí e vai cobrar o dinheiro daquele imprestável, Sara! Vitor, o nome dele é Vitor, Sara!

A voz ruidosa, proprietária do final do corredor, eu já conhecia. A velha herdara aquele canto, marido morto inesperadamente – um militar conservador e reacionário. Coração. A sobrinha, única de todo o jeito, perdera os pais em um acidente de trem. Adotara a menina, por demais obrigada, pelas dívidas deixadas pelo marido. Mulher de luta, vale assumir; o que explicava o seu jeito rude. Eu a ouvia nas manhãs, insistindo nas recomendações, satisfazendo-se aos gritos pelo corredor, sombreando a sobrinha com as reverberações de sua voz. Nem somente isso. Reclamava dos esquecimentos da menina, as “irresponsabilidades, os “inadmissíveis esquecimentos”, um carrasco implacável que determinava a pena em lugar público, como se quisesse avisar a todos os outros que atitudes daquela natureza não seriam admitidas no seu principado. Por um tempo, estudei aquela situação, os efeitos daquela privação da figura masculina. A vida em casal é como chuva que se precipita sobre a janela: no começo são apenas gotas que, por gravidade, deslizam sobre o vidro, ocasionalmente alcançado-se mutuamente, para então formar uma outra, maior, mais pesada, capaz de deslizar pelo vidro com mais velocidade. Aquela senhora era a gota que perdera água, deslizava com dificuldades. Nem se queixava. Apenas exigia dos outros, compensando de alguma forma a sua fragilidade. Copiava os hábitos do militar, revivendo-o. Cada grito era um choro contido, uma tristeza disfarçada.

O velho relógio, na parede oposta à janela, dava as nove. Cedo no sem muito por fazer. A mão no rosto, pele áspera, por barbear. Senti aquele enjôo. Outro dia, outra volta no carrossel, condenado a ir em frente; motivado pela possibilidade do fim, inconformado por deixar de escolher outra trilha. “Seu tempo está se esgotando”, disse o relógio. E havia mais? Era o que restara – o tempo. O compasso firme, que delatava a minha falta de vontade, a falta da paixão.

Saí da cama, sem alternativa. O chuveiro, o café: para revitalizar. Deixei o edifício apressado, sob a curiosidade da velha senhora que batia o tapete na janela. Eu era o estranho que incitava a atenção dos outros pelo comportamento bizarro e pelo aspecto desagradável. Fingi desvê-la. Uma caminhada pelo parque central, para aplacar a náusea.

Isabela me recriminaria, pois sei. Jamais admitiria que vida é dispor-se à sobrevivência. Acreditava no mais além, no cultivo de nossa curiosidade, inventar e reinventar, imaginar, criar. Queria conhecer os outros, descobrir os desejos inconfessáveis, e preenchê-los com sua existência, com o beijo carinhoso, o abraço acolhedor, no olhar aquiescente. Eu era a doença; ela, a cura.

No caminho, lembrei daquele sonho. Um quebra-cabeças de peças misturadas, de dois conjuntos distintos, assim: uma igreja muito grande, uma catedral talvez, quase renascentista, plena de afrescos. No centro uma imponente escadaria que escondia o seu fim. Ao meu lado, uma pessoa, um amigo, creio. Procurávamos um casamento, que aconteceria em uma das várias câmaras da igreja, dizia-me, sem saber ao certo qual era. Entramos em muitas, cada qual parecendo ser uma igreja independente, celebrando casamentos distintos. Mas não encontramos a celebração que queríamos. Seguimos, até perceber uma pequena sala com vários equipamentos de laboratório. Dentro da sala, uma moça, que nos explica que está conduzindo várias experiência e que está cansada de trabalhar sozinha. Nós a deixamos. Pela continuidade da procura. Então encontramos a câmara certa, mas nada há ali. Surpresos e decepcionados, decidimos voltar. Na saída, um homem nos informa que o casamento havia sido cancelado, pois a noiva havia morrido. Chorando compulsivamente, corro para a escadaria em direção à rua, mas ao passar pela frente do laboratório, aquela moça me pede para entrar, segurando a minha mão. Ela me diz que está revelando uma fotografia. Antes que eu entenda, ela me seduz e fazemos sexo. Ao deixar o laboratório, vejo a revelação: a foto é da noiva morta. Assustado, corro para deixar o lugar. Uns amigos me esperam em frente ao portal, eles choram a morte da noiva. “Quem era ela, afinal?”, pergunto, para descobrir que tinha apneas dezesseis anos e que morrera de doenças decorrentes de sua vida promíscua, pois era uma prostituta. O séquito fúbebre leva o esquife, enquanto a foto denuncia que a noiva morta é a moça do laboratório.

No parque, elaborei por uns instantes o teor do sonho. A terra úmida que afundava com os meus passos sugeriu a analogia: ao pisar, a terra secava, marcando uma pegada nítida, e depois empoçava de água novamente, tornando a pegada irreconhecível. Enquanto acontecia, o sonho parecia lógico, porém, ao acordar, era apenas um rastro sem origem. Nossos pensamentos, assim: obedecem o tempo, a sequencia, numa aparente relação, mas cada novo pensamento é letal ao pensamento predecessor. Invariavelmente, só o que é último fica.

Avistei o banco, o passo apressado, para ocupar logo o lugar, tomá-lo todo, sem chance de qualquer outro ao meu lado. Esparramei os braços. Em frente, aquela mulher lia um livro, enquanto ao redor brincava uma menininha de bochechas rosadas.

(Fim do Primeiro Fragmento da Parte 2)

Nenhum comentário:

Postar um comentário